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O tormento da lucidez
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Só existe um sentimento humano legítimo e verdadeiro: a angústia! Todo o resto é passageiro, todo o resto é irrelevante. As dores, as felicidades, as paixões... Nenhuma delas realmente importa. A angústia sim é fundamental, é ela que nos dá existência efetivamente humana, é a nossa companheira de toda uma vida; é ela quem está presente em cada pensamento e em cada ato e momento, sempre nos lembrando da falta de sentido do mundo e da irrelevância da nossa vida. Ela nos transforma naquilo que somos e marca o abismo entre o que queremos e o que o mundo nos permite. A angústia é parida pela responsabilidade que cada indivíduo tem diante das suas escolhas. O peso da liberdade e a responsabilidade pelo seu destino provocam no indivíduo lúcido os maiores tormentos. No seu desespero resignado, nosso amigo Kierkegaard lembrou que o indivíduo mais satisfeito é aquele que não tem consciência de sua situação; na sua filosofia estava escondido o óbvio: o desespero é bom, é o abandono de todas as certezas, é a vertigem da liberdade! A verdade é que toda e qualquer tentativa de se resolver os problemas existenciais são inúteis; mas diante deles há dois caminhos possíveis: se apegar ao conforto de qualquer explicação sobrenatural, ou aceitar que a existência humana é necessariamente sem sentido e ridícula, medíocre porém fantástica, e que a nossa capacidade de zombar dela é que nos faz capazes de suportar o seu peso. Ou nosso reino não é deste mundo ou nosso mundo não é deste reino!



A verdade sempre nos condena
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Eu confesso senhores, eu confesso! Assumo que já tentei ser politicamente correto, que já tentei ser o mais honesto e justo entre os homens. Com esta confissão não estou dizendo que cometi um crime, mas que cometi um erro. Meu erro foi acreditar que poderia ser guiado pela minha razão e que a minha razão me faria uma pessoa melhor. A tentativa de ser, ou, no meu auto-engano, de tentar mostrar ser, um sujeito bom e correto é um equívoco que cometemos quando sucumbimos diante das cobranças da sociedade, do moralismo religioso ou diante do sentimento de culpa que vem de ambos. É uma estupidez, é uma debilidade! Na verdade nós não temos muitas opções, ou somos imbecis ou somos ordinários; ou vivemos uma mentira ou vivemos uma verdade que nos condena. Não há outras possibilidades, somos crápulas assumidos ou somos hipócritas! Quando soube disso, desisti de buscar a bondade e a santidade, desisti de tentar ser herói e busquei me libertar para praticar meus pequenos crimes e para cometer meus enormes pecados. Diante das nossas fraquezas, a única possibilidade que a vida nos permite é a de assumir ou não nossos erros. O pouco de ética que nossas paixões nos permite depende do reconhecimento de nossas limitações. Não há salvação, mas é nesse reconhecimento que o homem pode manter o equilíbrio fino entre o aceitável e o inaceitável, encontrar o que pode e o que deve e a tranquilidade de consciência que o permite dormir tranquilo. Não serei amargo, serei doce. Minha doçura será espalhar sal nas feridas que não são as minhas.





Palavra da Salvação 

Uma identidade imponente...
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Os evangélicos têm razão em uma coisa: é necessário pregar a palavra. A palavra transforma vidas. Transformou a minha! Era ainda moleque, estava na quinta ou sexta série quando aconteceu. O fato é que quando eu voltei do recreio meu caderno estava aberto sobre a carteira e em letras garrafais lá estava a palavra: cínico! Eu era um cínico! A palavra mudou minha vida, até aquele momento eu não era nada, eu não tinha identidade, não tinha uma qualificação... Era um sujeito sem predicado, sem adjetivo. Mas daquele dia em diante passei a me ver com outros olhos, eu era alguém, eu tinha um atributo e uma qualidade: eu era um cínico! Eu podia abrir o dicionário e me encontrar, do mesmo modo que eu podia abrir a enciclopédia e encontrar Jesus. Para um moleque de uns doze ou treze anos, ser cínico só poderia ser uma glória, afinal eu tinha um adjetivo sofisticado, imponente e, acima de tudo, um adjetivo com a força dos proparoxítonos. Tomei gosto, fui crescendo e incorporando novos atributos e novos predicados, todos proparoxítonos: crápula, hipócrita, sarcástico... Veja a beleza da vida: sem querer, a menina que escreveu no meu caderno mudou minha história, me transformou em alguém, me deu uma imagem e uma personalidade bem resolvida. Se uma dia eu aprender a orar, talvez dê graças a ela por nunca ter necessitado procurar um analista!

E a palavra, uma vez lançada, voa irrevogável. [Horácio, 65-8 a.C.] 


O medo da morte e a mente perturbada
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Thomas Hobbes é um filósofo do medo. Em vida foi um covarde, mas não foi bobo. Conhecia bem a natureza humana, sabia que o egoísmo e o desejo de poder de cada um era uma ameaça a todos os outros e que, por conta deles, os conflitos e as guerras eram inevitáveis. Sabia que, assim como ele, os outros homens são medrosos e covardes porque temem a morte e se apegam à vida mesmo quando ela é solitária, miserável, sórdida e embrutecida. Junte o risco eminente de conflito, a violência ameaçadora e o medo e se tem os ingredientes básicos para a formulação da defesa de um Estado totalitário. O medo perturba a mente; em qualquer época, em qualquer lugar, o medo da morte violenta leva o homem a aceitar qualquer situação que possa lhe garantir a vida. Para garantir sua sobrevivência o homem aceita se submeter a governos autoritários, aceita abrir mão de seus direitos, de sua liberdade, de sua felicidade... Mesmo o mais medíocre estadista sabe o poder do medo, sabe que o medo é o soberano que iguala os homens e também sabe que os regimes políticos precisam de terríveis inimigos; sejam eles reais ou imaginários.