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A colher e o espetáculo da morte
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No fundo sabemos que somos capazes das coisas mais cruéis, isso nos causa mal-estar e vergonha. Sempre que possível tentamos esconder que somos monstros. Lia outro dia sobre um caso de linchamento. Um sujeito foi agredido até a morte e, como é costume nesses casos, os agressores provavelmente se preparavam para atear fogo no corpo já devidamente desfigurado no momento em que a polícia chegou. Só conseguiu fazer uma prisão em flagrante: a de uma mulher idosa que estava com uma colher na mão tentando arrancar os olhos do sujeito. Desculpem-me os apóstolos da razão, mas cada um de nós tem muito mais a ver com essa mulher do que gostaríamos de reconhecer. Nosso senso de justiça não é razoável, por isso o homem se delicia com execuções e tortura em praça pública. Queremos o espetáculo da morte, queremos impor nossa justiça pela dor e pelo sangue. O homem que lincha e a mulher que arranca olhos com colher, não são pessoas dominadas pelo capeta, não são monstros irracionais nem são bestas dominadas pela maldade, são gente; como eu e como você.




Desejos de vingança e rabanetes
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John Locke nem de longe é meu filósofo favorito, mas acredito que às vezes ele era um sujeito razoável. Ele sabia que a natureza doentia, as paixões e o desejo de vingança podem levar o homem longe demais nos seus anseios por punições alheias. A história que começa no olho por olho, dente por dente, pode nos levar às sepulturas ou ao inferno terrestre. Dar a outra face? O caralho! Nós adoramos vingança. Queremos a desgraça alheia, desejamos o mal para aquele que nos ofende. Quem nos dá um tapa merece muito mais que outro tapa, e nisso perdemos o senso de proporção. Locke deve ter lido a estória da Rapunzel e deve ter lembrado da bruxa malvada que trocou a pobre menina, ainda no útero da mãe, pelo punhado de rabanetes que seu pai havia roubado na sua horta. Não é razoável trocar crianças por rabanetes, mas o desejo de vingança é muito mais forte que a razão. No fundo somos todos umas bruxas malvadas.