País dos sacripantas II

O livro e a sílaba que não pode ser escrita
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O governo resolveu convocar o Conselho da República para uma reunião extraordinária; descobriram que circulava pela sociedade um livro que tinha um cu no meio, isso mesmo no meio do livro, pasmem, tinha um cu, bem na página 47. Parecia ser um cu discreto e inofensivo, talvez um erro gráfico, mas o Departamento de Moral o considerou uma ameaça às famílias e aos bons costumes. O escritor foi convocado a depor, afinal um cu não deve ser exposto publicamente, é uma palavra feia como diziam nossas avós; se ao menos fosse ânus tudo bem, os livros de biologia e medicina têm ânus e ninguém nunca reclamou, ou ainda se fosse um singelo e familiar furico, quem sabe um fiofó, tudo bem, mas não, era um cu mesmo: duas letrinhas inofensivas mas que juntas podiam destruir as famílias e os bons costumes. O debate tomou conta do país, uns diziam que não havia nada de errado com a palavra, o problema era que o cu estava no lugar errado, outros sugeriam que tapassem o cu, ou que o arrancassem dali, só não sabiam como. Um ministro resolveu realizar uma campanha educativa: ‘dê livros para seus filhos, mas dê livros que não tenham cu, pois que dá livro com cu sem querer dá o cu pro próprio filho!’ A campanha pegou mal, evidentemente, pois acabava por promover mais o cu que os livros. Cogitaram que o melhor seria colocar todos os livros na fogueira, solução autoritária que os sábios da república logo perceberam seria uma ameaça à liberdade de expressão; resolveram então que a decisão mais sábia seria furar os olhos de todas as crianças para que elas jamais vissem algum cu pela frente. Para as próximas gerações restará as belas palavras do poeta: ‘No meio do livro tinha um cu, tinha um cu no meio do livro... eu nunca me esquecerei deste acontecimento na vida de minhas retinas...’